INTERAÇÕES MEDICAMENTOSAS: CONCEITOS E CLASSIFICAÇÕES

Fármacos são ferramentas terapêuticas utilizadas para tratamento, diagnóstico e em certos casos, cura do paciente. No entanto, além do potencial terapêutico, os fármacos podem ocasionar efeitos adversos, nos quais podem ocorrer simples complicações à até mesmo o óbito. Por isso, a utilização simultânea de dois ou mais fármacos deve estar acompanhada de justificativas que corroborem com seu uso, visto que pode ocorrer tanto aumento da eficácia terapêutica, assim como malefícios à saúde do paciente. O uso simultâneo de dois ou mais fármacos pode levar ao surgimento de interações medicamentosas (IM) (SANTOS et al., 2011; OKUNO et al., 2013).

As IM caracterizam-se como todo evento em que os efeitos de um fármaco são alterados pela presença de outro fármaco administrado simultaneamente. Outras substâncias presentes na formula como os excipientes, ou mesmo o consumo de alimentos junto com o medicamento podem também implicar em IM (SNYDER; POLASEK; DOOGUE, 2012).

Deve-se destacar que a prática da polifarmácia – prescrição simultânea de vários medicamentos – é muito comum na prática clínica. Essa estratégia visa a melhora do quadro clínico do paciente, buscando aumentar a eficácia dos medicamentos, ou mesmo diminuir sua toxicidade ou tratar outras comorbidades. Tal estratégia, no entanto, não está isenta de iatrogenias – erros causados por falha médica, como reações adversas, tóxicas e outras complicações (SANTOS et al., 2011).

Levantamentos estatísticos apontam a frequência com que a polifarmácia ocorre no ambiente hospitalar. Estima-se que cerca de 15% dos pacientes hospitalizados são acometidos por IM, culminando na maior permanecia hospitalar, acarretando, inclusive, aumento de custos (insumos, medicamentos, recursos humanos etc.). Esse cenário se agrava nas unidades de terapia intensiva (UTI), onde a prática da polifarmácia se faz muito presente. Estudos apontam que a ocorrência de IM em UTI é estimada em torno de 44,3% a 95% dos casos. Estudos apontam, ainda, associação entre polifarmácia e maior ocorrência de IM. Observou-se que o uso de dois fármacos acarretava um risco de 13% de ocorrer IM, enquanto que o uso de seis fármacos ou mais culminava em 85% de possibilidade de ocorrer IM. (SCRIGNOLI; TEIXEIRA; LEAL, 2016; SANTOS et al., 2011).

Constata-se que existem alguns fatores ligados a ocorrência de IM, dentre eles podem ser citados o número de fármacos prescritos, faixa etária do paciente, comorbidades, condição clínica, via de administração e duração do tratamento (SCRIGNOLI;TEIXEIRA; LEAL, 2016).

Para o manejo adequado das IM, é importante que a equipe multiprofissional saiba reconhecer e classificar as IM mais comuns na prática clínica. De acordo com o seu mecanismo de surgimento, as IM podem ser classificadas em: 1) interações farmacêuticas/incompatibilidades medicamentosas; 2) farmacocinéticas; 3) farmacodinâmicas. As IM podem ainda ser classificadas segundo critérios de gravidade e nível de documentação da literatura científica (CEDRAZ; SANTOS JUNIOR, 2014).

As IM farmacêuticas ocorrem antes mesmo da administração (in vitro), e se dá durante a manipulação de dois ou mais fármacos numa seringa, equipo ou outro recipiente. Estes fármacos podem vir a apresentar incompatibilidades físico-químicas, resultando, por exemplo, em alterações organolépticas – como mudança de cor, odor, sabor –, precipitação, alteração da atividade farmacológica – formação de um composto ativo, inócuo ou mesmo tóxico. Por exemplo, a administração intravenosa de tiopental sódico e vecurônio em conjunto resulta na precipitação do primeiro (BECKER, 2011; SNYDER; POLASEK; DOOGUE, 2012).

As IM farmacocinéticas são aquelas em que um fármaco altera velocidade ou a extensão de absorção, distribuição, metabolismo e/ou excreção de outro fármaco, com consequências clínicas. Estas interações podem ocorrer pelos seguintes mecanismos:

A absorção de um fármaco pode sofrer interferência de outro através de alteração no pH gastrintestinal, quelação, alteração na motilidade gastrintestinal etc. Por exemplo: o alendronato sofre redução de sua biodisponibilidade quando administrado juntamente com cálcio, devido a complexação que ocorre entre eles, resultando num aumento da massa molecular do alendronato. Esse aumento de massa diminui a extensão de absorção do alendronato (SNYDER; POLASEK; DOOGUE, 2012).

Na distribuição os fármacos agem competindo pelas proteínas plasmáticas, responsáveis por transportar os fármacos até o tecido alvo/sítio de ação. Essa competição pode gerar o aumento da fração livre que pode resultar em aumento da fração ativa e consequentemente no efeito farmacológico, em certas situações atingir a concentração tóxica. Por exemplo, a varfarina possui taxa de ligação a albumina plasmática de 99%, caso a mesma seja administrada com furosemida, o deslocamento da varfarina pode ocorrer e sua fração livre pode aumentar, levando a maior atividade anticoagulante, podendo ocorrer hemorragias. (BECKER, 2011).

Os fármacos podem ainda agir alterando o metabolismo uns dos outros, por intermédio de indução ou inibição enzimática. Quando um fármaco inibe as enzimas, pode haver o aumento da concentração de outros em virtude da redução de seu metabolismo. Por exemplo, a claritromicina inibe a CYP3A, responsável por metabolizar a sinvastatina, aumentando consideravelmente a ocorrência de miopatia. Já a indução de enzimas aumenta o metabolismo de determinados fármacos, diminuindo assim a concentração de outros fármacos. Por exemplo, a carbamazepina ao induzir a CYP3A, incumbida de metabolizar anticoncepcionais de uso oral, aumenta o metabolismo destes, e como consequência pode haver gravidez indesejada (SNYDER; POLASEK; DOOGUE, 2012).

Ainda durante a excreção (renal e/ou  biliar) pode haver IM. Alguns fármacos excretados pela via renal são capazes de alterar o pH urinário, podendo influenciar na eliminação ou reabsorção de outros fármacos. Por exemplo, a probenecida reduz a eliminação de drogas aniônicas, como a penicilina, fazendo com que a mesma seja reabsorvida, permanecendo mais tempo no organismo (CORRIE; HARDMAN, 2014; SNYDER; POLASEK; DOOGUE, 2012). A eliminação de fármacos também se dá via bile e alguns ao caírem no intestino são reabsorvidos, entrando num ciclo entero-hepático muito utilizado para aumentar a duração de ação do fármaco, como os contraceptivos. Quando metabolizados, os contraceptivos geram metabólitos inativos conjugados, sendo eliminados pela bile. Bactérias localizadas no intestino promovem a lise desse conjugado e tornam possível a reabsorção do fármaco ativo, e consequentemente sua ação mais duradora. No entanto, o uso de antibióticos via oral altera esse ciclo ao agir sobre essa cultura bacteriana do intestino. Consequentemente, o anticoncepcional não será reabsorvido no intestino ao ser eliminado pela bile, diminuindo sua duração de ação no organismo (RANG et al., 2016).

As IM farmacodinâmicas ocorrem quando o efeito de um fármaco é alterado pelo outro, seja no mesmo local de ação, ou por mecanismo diferente (CORRIE; HARDMAN, 2014). As IM farmacodinâmicas podem ocorrer por sinergismo ou antagonismo. O sinergismo é obtido a partir da associação de dois ou mais fármacos que confere uma resposta farmacológica maior que o uso isolado de cada um, que por atuarem em diferentes mecanismos de ação, geram um efeito potencializado. Como exemplo, pode-se citar a combinação benéfica de anti-hipertensivos e diuréticos que, por sinergismo, irão atuar reduzindo a pressão arterial (SNYDER; POLASEK; DOOGUE, 2012). No antagonismo tem-se a anulação ou redução da resposta farmacológica de um fármaco quando associado a outro. Essa interação pode se dar pela competição pelos mesmos alvos moleculares. Pode-se esperar respostas benéficas como o uso de naloxone (antagonista opioide) em casos de depressão respiratória devido ao uso de morfina. Assim como pode ocorrer associações indevidas que podem trazer prejuízos a terapêutica, como o uso de propranolol (antagonista não seletivo de receptores β) que pode vir a competir com o salbutamol (agonista de receptores β2) pelo receptor β2 do pulmão. Essa competição irá resultar na redução da eficácia do salbutamol e assim, em um episódio asmático, o salbutamol não terá uma ação broncodilatadora satisfatória (RANG et al., 2016). Veja abaixo uma tabela contendo exemplos de IM (tabela 1).

Em todo caso, o ideal é a atuação efetiva do farmacêutico clínico junto a equipe multiprofissional, pois este é o profissional que detém competência técnica para orientar a equipe quanto a terapia medicamentosa do usuário/paciente, visto que muitos profissionais desconhecem o perfil de ação dos fármacos. Outra atuação importante seria a revisão de prescrições no intuito de apurar se há possibilidade de IM. Caso exista essa possibilidade, o farmacêutico deve, junto ao prescritor, orientar na prescrição que irá ser benéfica para a terapêutica do paciente. Além disso, é importante enfatizar que o manejo das interações é de responsabilidade de toda a equipe multidisciplinar, que deve elaborar estratégias no intuito de minimizar os erros e preveni-los (SANTOS et al., 2011; OKUNO et al., 2013).

Tabela 1 – Exemplos de interações medicamentosas.


Referências

BECKER, Daniel E. Adverse drug interactions. Anesthesia Progress, v. 58, n. 1, p. 31-41, 2011.

CEDRAZ, Karoline Neris; SANTOS JUNIOR, Manoelito Coelho dos. Identificação e caracterização de interações medicamentosas em prescrições médicas da unidade de terapia intensiva de um hospital público da cidade de Feira de Santana, BA. Rev. Soc. Bras. Clin. Med. v. 12, n. 2, abr./jun., 2014.

CORRIE, Kathryn; HARDMAN, Jonathan G. Mechanisms of drug interactions: pharmacodynamics and pharmacokinetics. Anaesthesia & Intensive Care Medicine, v. 15, n. 7, p. 305-308, 2014.

OKUNO, Meiry Fernanda Pinto et al. Interação medicamentosa no serviço de emergência. Einstein, v. 11, n. 4, p. 462-466, 2013.

RANG, H. P. et. al. Farmacologia. Tradução de Gea Consultoría Editorial. 8. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2016.

SANTOS, Luciana dos et al. Perfil das interações medicamentosas solicitadas ao centro de informações sobre medicamentos de hospital universitário. Revista HCPA, v. 31, n. 3, p. 326-335, 2011.

SCRIGNOLI, Caroline Pina; TEIXEIRA, Vivian Cássia Miron Carolino; LEAL, Daniela Costa Prates. Interações medicamentosas entre fármacos mais prescritos em unidade de terapia intensiva adulta. Rev. Bras. Farm. Hosp. Serv. Saúde, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 26-30, abr./jun. 2016.

SNYDER, Ben D.; POLASEK, Thomas M.; DOOGUE, Matthew P. Drug interactions: principles and practice. Australian Prescriber, v. 35, p. 85-88, 2012.

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